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Os limites dos atos normativos regulamentares

Os atos normativos que regulamentam as leis têm limites, podem criar ou restringir direitos, podem contrariar a lei?

Este artigo científico propõe-se a debater os limites impostos aos atos normativos regulamentares no ordenamento jurídico brasileiro. Questiona-se, fundamentalmente, se tais regulamentos podem inovar na ordem jurídica, criando direitos ou estabelecendo disposições contrárias à lei (ato normativo primário) que visam regulamentar.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 84, inciso IV, estabelece a competência privativa do Presidente da República para expedir decretos e regulamentos destinados à fiel execução das leis. Complementarmente, o art. 87, parágrafo único, inciso II, da Carta Magna, atribui aos Ministros de Estado a competência para expedir instruções que assegurem a execução das leis, decretos e regulamentos.

Acerca do poder regulamentar, o renomado jurista Hely Lopes Meirelles[1] leciona sobre a necessidade de o Executivo suprir, por meio de decretos, as lacunas legais ou prover situações não antecipadas pelo legislador, ressalvando, contudo, a impossibilidade de invasão das matérias reservadas à lei, especialmente aquelas que afetam direitos e garantias individuais (art. 5º da CF/88). Meirelles[2] enfatiza que, embora a faculdade normativa pertença predominantemente ao Legislativo, o Executivo também a exerce ao expedir regulamentos e outros atos gerais com efeitos externos, os quais complementam a lei naquilo que não lhe é privativo.

Sobre a hierarquia normativa, Meirelles complementa, distinguindo lei e regulamento:

“O regulamento não é lei, embora a ela se assemelhe no conteúdo e poder normativo. Nem toda lei depende de regulamento para ser executada, mas toda e qualquer lei pode ser regulamentada se o Executivo julgar conveniente fazê-lo. Sendo o regulamento, na hierarquia das normas, ato inferior a lei, não a pode contrariar, nem restringir ou ampliar suas disposições. Só lhe cabe explicitar a lei, dentro dos limites por ela traçados, ou completá-la, fixando critérios técnicos e procedimentos necessários para sua aplicação. Na omissão da lei, o regulamento supre a lacuna, até que o legislador complete os claros da legislação. Enquanto não o fizer, vige o regulamento, desde que não invada matéria reservada à lei.”[3]

Depreende-se, assim, que o regulamento é um ato secundário, cuja existência e validade dependem da lei. Sua função é explicitar ou complementar a norma legal, jamais contrariá-la, restringi-la ou ampliá-la indevidamente.

A jurisprudência pátria corrobora esse entendimento. O Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou sobre a constitucionalidade de decreto legislativo que sustou ato normativo do Poder Executivo por exorbitar o poder regulamentar:

“REGULAMENTO – BALIZAS – SUSTAÇÃO – EXECUTIVO VERSUS LEGISLATIVO. Mostra-se constitucional decreto legislativo que implique sustar ato normativo do Poder Executivo exorbitante do poder regulamentar. TETO – APLICAÇÃO – LEI E REGULAMENTO. O regulamento pressupõe a observância do objeto da lei. Extravasa-a quando, prevista a aplicação do teto de remuneração de servidores considerada a administração direta, autárquica e fundacional, viabiliza a extensão às sociedades de economia mista e empresas públicas.”[4] (destacamos)

Na mesma linha, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reconheceu a ilegalidade de decreto municipal que extrapolou os limites da lei ao estabelecer requisitos não previstos por esta:

“RECURSO INOMINADO – PODER REGULAMENTAR – DECRETO MUNICIPAL QUE EXTRAPOLOU OS LIMITES DA REGULAMENTAÇÃO ESTABELECENDO REQUISITOS NÃO PREVISTOS NA LEI – ILEGALIDADE RECONHECIDA – DIREITO À PERCEPÇÃO DE VERBA INDENIZATÓRIA RECONHECIDO – DANO MORAL NÃO CARACTERIZADO – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO – O ato regulamentar, destinado à execução da Lei não pode desbordar dos limites por ela impostos para se transformar em regulamento autônomo que importe em exercício de discricionariedade na imposição de requisitos diversos daqueles que foram descritos de forma vinculante pelo legislador.[5] (destacamos) 

Ademais, os atos regulamentares não podem impor restrições mais gravosas do que as previstas em lei, nem contrariar, restringir ou ampliar suas disposições. Nesse sentido, posicionaram-se o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) e o Tribunal de Justiça do Pará (TJPA):

“ADMINISTRATIVO. TRENSURB. TERMO DE PERMISSÃO DE USO. PRECARIEDADE. REVOGAÇÃO. LICITAÇÃO. LEI 13.303/2016. REGULAMENTO INTERNO DA ESTATAL. RESTRIÇÃO MAIS GRAVOSA. ILEGALIDADE. DESPROVIMENTO. 1. A permissão de uso constitui ato administrativo precário, unilateral e discricionário da Administração, podendo ser revogado a qualquer momento, mediante análise de conveniência e oportunidade da própria Administração Pública, uma vez que prepondera o interesse público sobre o direito individual dos administrados. 2. A atuação do Poder Judiciário circunscreve-se ao campo da regularidade do procedimento e à legalidade do ato, sendo-lhe defesa qualquer incursão no mérito administrativo. A existência de vício na motivação do ato representa vício de forma passível de controle pelo Judiciário por ser elemento vinculado do ato administrativo. 3. No caso dos autos, não é que inexista a realidade fática mencionada no ato como determinante da vontade, tampouco que a vedação invocada não estivesse contida no instrumento convocatório, mas sim ilegalidade da exigência imposta pelo dispositivo invocado pela Administração, uma vez que representa restrição indevida ao direito de licitar/participar de licitações. 4. O impedimento estabelecido no Regulamento para Utilização dos Espaços disponibilizados nas Dependências e Equipamentos da TRENSURB representa restrição mais extensa daquela estabelecida no art. 38 da Lei 13.303/2016 e, portanto, extrapola os limites do poder de regulamento concedido pelo art. 40 da mesma lei. 5. A norma que motivou a rescisão unilateral da permissão de uso, por não possuir amparo legal, revela-se indevida. Além disso, não restou demonstrado indício ou possibilidade de favorecimento no procedimento licitatório. Mantida a sentença que concedeu a segurança. 6. Diante da natureza legal da permissão de uso (ato administrativo precário, unilateral e discricionário), a vedação à rescisão reconhecida neste mandamus limita-se à justificativa outrora invocada e não impede que o ato venha a ser revogado por outro motivo, conforme critérios de oportunidade e conveniência da Administração Pública. 7. Apelo e reexame necessário desprovidos.”[6] (destacamos)

“APELAÇÃO CÍVEL E REMESSA NECESSÁRIA. AÇÃO ORDINÁRIA DE COBRANÇA. GRATIFICAÇÃO DE ENSINO SUPERIOR. CABIMENTO. PREVISÃO LEGAL. DECRETO EXECUTIVO NÃO PODE RESTRINGIR DIREITO PREVISTO EM LEI. VIOLAÇÃO A HIERARQUIA DAS NORMAS. ILEGALIDADE. APELAÇÃO DESPROVIDA. EM REEXAME NECESSÁRIO, SENTENÇA MANTIDA. DECISÃO UNÂNIME. 1 – O Decreto regulamentador visa somente explicar o modo e a forma de execução da lei. Como ato regulamentador, (…) não pode contrariar o sentido, nem desbordar dos seus limites. O regulamento não é lei, embora a ela se assemelhe no conteúdo e poder normativo. Sendo o regulamento, na hierarquia das normas, ato inferior à lei, não a pode contrariar, nem restringir ou ampliar suas disposições. Só lhe cabe explicitar a lei, dentro dos limites por ela traçados. 2 – No presente caso, a Lei Complementar 002/2011 (Estatuto dos servidores) e a Lei nº 623/2010 (PCCR), ambas do Município de Rondon do Pará são claras quantos aos requisitos necessários para percebimento da gratificação de nível superior, qual seja, a comprovação de graduação pelo professor de nível médio. Desta feita, acertada a sentença de primeiro grau que considerou a ilegalidade do regulamento.”[7] (destacamos)

Verifica-se, portanto, que a jurisprudência é consistente ao afirmar que os atos normativos regulamentares não podem estabelecer restrições mais severas que as legais, tampouco ampliar indevidamente as disposições da lei que regulamentam.

Diante do exposto, conclui-se que os atos normativos regulamentares encontram seu limite intransponível na lei. Subordinados hierarquicamente a esta, não podem contrariar suas disposições. Diferentemente da lei, os regulamentos não possuem caráter inovador no ordenamento jurídico, não podendo criar direitos ou obrigações não previstos na norma primária. Consequentemente, é vedado aos atos regulamentares restringir ou ampliar o alcance das disposições legais que visam executar. Sua função restringe-se a detalhar e viabilizar a fiel aplicação da lei, nos estritos limites por ela definidos.


Referências

[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 130-131.

[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 130-131.

[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 130-131.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 1553, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 13-05-2004, DJ 17-09-2004 PP-00083 EMENT VOL-02164-01 PP-00129 LEXSTF v. 27, n. 313, 2005, p. 61-84.

[5] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. TJ-SP – Recurso Inominado Cível: 10001996420248260357 Mirante do Paranapanema, Relator.: Ronnie Herbert Barros Soares, Data de Julgamento: 22/08/2024, 8ª Turma Recursal de Fazenda Pública, Data de Publicação: 22/08/2024.

[6] BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região – TRF-4 – ApRemNec – Apelação/Remessa Necessária: 50369873520234047100 RS, Relator.: ROGER RAUPP RIOS, Data de Julgamento: 16/04/2024, 3ª Turma, Data de Publicação: 16/04/2024.

[7] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Pará – TJ-PA 00067701120178140046, Relator.: EZILDA PASTANA MUTRAN, Data de Julgamento: 19/10/2020, 1ª Turma de Direito Público, Data de Publicação: 21/10/2020.

Sobre o autor:

Assessor Especial da Presidência do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins – TCE/TO, Advogado, mais de dez anos de experiência no serviço público, tendo trabalhado no Ministério dos Transportes, no TJDFT, na Secretaria da Micro e Pequena Empresa da Presidência da República, na Subchefia de Assuntos da Casa Civil da Presidência da República, na Prefeitura Municipal de Araguaína/TO como Presidente da Agência Municipal de Segurança Transporte e Trânsito e Subprocurador-Geral do Município, como Procurador-Chefe da Câmara Municipal de Araguaína, membro examinador de banca de pós-graduação lato sensu, Especialista em Prática Processual nos Tribunais pelo UniCEUB, Coordenador da Coleção Teses Defensivas e autor do livro “Teses Defensivas Improbidade Administrativa” da Editora Juspodivm. E-mail: diogoesteves.adv@gmail.com

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