spot_img

“Ainda Estou Aqui”, um filme não tão distante dos dias atuais

O filme sobre Eunice Paiva e Rubens Paiva durante a ditadura militar traz reflexões sobre os desafios da democracia no Brasil atual

2 milhões e 200 mil pessoas já foram aos cinemas se emocionar com a obra prima do cinema nacional, Ainda Estou Aqui. O filme conta a história do sequestro do ex-deputado Rubens Paiva pelas forças armadas durante a ditadura militar na perspectiva de Eunice Paiva, tratando do vazio que ficou após ele ser retirado de casa, enaltecendo o amor que existia na família e a importância da busca pela verdade. Na época, Rubens, que já não era mais deputado, tampouco atuante no Partido Trabalhista Brasileiro, foi preso por supostamente auxiliar a comunicação de exilados e opositores do regime.

O roteiro envolvente, a linda fotografia e as atuações brilhantes de Fernanda Torres e Selton Mello nos fazem realmente sentir como se fossemos parte da família Paiva ao longo das 2 horas e 17 minutos de duração do filme. E se vivêssemos em uma democracia plena, esse texto poderia acabar aqui, uma superficial crítica de cinema limitada a expressar o total apoio ao filme nas premiações internacionais. 

O problema é que no Brasil, quando saímos do cinema nos damos conta de que a história que acabamos de ver na telona não é uma história dos anos 70, ela está em vias de se repetir nos dias de hoje.

E o curioso é que apesar da repercussão do filme, os setores da sociedade que lá atrás combateram a ditadura e defenderam a democracia, que saíram às ruas nas Diretas Já, que participaram da criação da Constituição Cidadã de 1988 e que, sem dúvidas, saíram emocionados dos cinemas após ver o filme, não demonstram a mesma vigorosidade na defesa destes valores em relação aos perseguidos políticos do Brasil de hoje.

Talvez ainda presos às boas lembranças da redemocratização, boa parte das elites do país (que não podemos esquecer, são quem tem dinheiro para ir ao cinema), simplesmente ignoram a manutenção dos inquéritos “das Fake News” e dos “atos antidemocráticos” no Supremo Tribunal Federal, em que a Corte é vítima, inquisidora e julgadora, tudo ao mesmo tempo, à revelia do processo penal. Ou a suspensão de contas em redes sociais de diversas lideranças políticas, inclusive de deputados, sem previsão legal ou qualquer instrução processual, situação que foi bastante agravada pela recente publicização do aparelhamento do TSE para perseguição de desafetos políticos do Ministro Alexandre de Moraes.

Poderíamos, com tranquilidade, preencher essa lista com a situação em que se encontra o Senador Marcos do Val, com a prisão de Daniel Silveira, a cassação do mandato de Deltan Dallagnol, mas se assim fizesse, esse texto seria descredibilizado por se associar à extrema direita, os inimigos da vez.

Por isso vou me ater ao indiciamento do Deputado Marcel Van Hattem por uma denúncia feita na tribuna da Câmara dos Deputados a respeito de graves erros na prisão preventiva de Filipe Martins.

O parlamentar não cometeu nenhum crime. Não praticou “conduta típica”, como se diria numa cadeira de Direito Penal em uma faculdade de Direito. Pelo contrário, ele estava exercendo uma das funções do Legislativo ao fiscalizar a Polícia Federal, que é um órgão do Executivo, como ensinam os professores de Direito Administrativo.

Todavia, por razão alheia ao Direito, o Ministro Flávio Dino autorizou que a Polícia Federal investigasse Marcel Van Hattem. Assim, se presumiria que a conclusão das investigações seria o arquivamento do inquérito, pois como se aprende nas aulas de Direito Constitucional, os parlamentares são “invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. E, apesar de haver discussão a respeito da extensão dessa imunidade – se ela se aplicaria a manifestações na imprensa ou nas redes sociais ou ainda em atividades que não sejam claramente parte do exercício do mandato – há jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal de que a imunidade é absoluta para as falas na tribuna da Câmara.

Como o deputado fez a tal denúncia na tribuna do parlamento brasileiro, mesmo que houvesse praticado algum crime, indiscutivelmente ele estaria imune, certo? Errado. Marcel Van Hattem foi indiciado. O recado foi claro: você está incomodando, não mexa com os donos do poder.

A afronta à independência do Legislativo foi tão grave que o presidente da Câmara, Arthur Lira, fez uma fala contundente sobre o abuso da polícia federal nesse caso. Seria ideal que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, seguisse o exemplo. Contudo, já não o fez nos casos anteriores e inclusive, ao que parece, quer uma vaga no STF, então não é momento de desagradar a Presidência ou seus futuros colegas ministros.

Assim, ao que parece, seguiremos vendo, mais uma vez, as instituições brasileiras sucumbirem diante dos nossos olhos. E se o que nos emociona no filme Ainda Estou Aqui é a absoluta injustiça do uso da violência pelo Estado para atender aos caprichos dos poderosos de ocasião, parece que daqui a 50 anos teremos novos bons enredos para filmes no Brasil. 

O que aparentemente ainda está aqui no Brasil é a sanha autoritária, que conta com a condescendência de determinados setores da sociedade. Por isso, se na história recente, em algum momento houve de verdade algum compromisso com a democracia nesse país, é preciso relembrar que um democrata defende antes de tudo a manutenção da institucionalidade e do jogo harmônico entre os poderes, independente de quem está no poder ou de quem vai ganhar as próximas eleições.

No Brasil, isso significa maior autocontenção do Judiciário, um posicionamento mais enfático do Legislativo e menos aparelhamento no Executivo.

Sobre o autor:

Vitor Beux Martins

Advogado, líder de políticas públicas do Instituto Libertas, com experiência de assessoria parlamentar no Congresso Nacional e de gestor público no Governo do Estado de Minas Gerais

Siga a Cátedras:
Relacionadas

Deixe um comentário:

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

- Publicidade -spot_img

Últimas