Nos últimos dias, muito se tem discutido sobre a formação de maioria no STF em torno de um dos pontos do RE 635.659 (que deu origem ao tema de repercussão geral nº 506). Com este texto, pretendemos esclarecer que o alcance da decisão é muito mais limitado do que se imagina, mas, por outro lado, abre um número enorme de questões que não são resolvidas no âmbito desse julgamento.
O recurso é bastante antigo, autuado em fevereiro de 2011. Os primeiros votos começaram a ser proferidos apenas em meados de 2015, com o relator (Min. Gilmar Mendes) e, poucas semanas depois, pelos Ministros Edson Fachin e Roberto Barroso. Em sequência, houve pedido de vistas pelo Min. Teori Zavascki, mas este não proferiu voto, em razão de seu falecimento no início de 2017. A vaga do mencionado magistrado foi ocupada pelo Min. Alexandre de Moraes. Desde então, o caso ficou sem novos votos e, a partir de agosto de 2023, a discussão voltou a ganhar tração. Até o dia 25/06, inexistia formação de maioria absoluta em torno da questão central do tema 506. Na sessão da referida data, os demais Ministros se manifestaram.
Muitas das movimentações legislativas e discussões nos meios de comunicação são provocadas por discursos de pânico moral[1], e não na compreensão sobre o escopo da potencial decisão que tende a ser proferida pelo Supremo Tribunal. Deixaremos de comentar sobre o caso concreto subjacente ao recurso, porque já se tornou secundário no debate, eis que o julgamento ganhou uma generalidade que vai muito além da situação específica que gerou a provocação da Corte.
O voto proferido pelo relator do recurso, Min. Gilmar Mendes, em agosto de 2015, declarou a inconstitucionalidade sem redução de texto do art. 28 da Lei 11.343/2006. A incompreensão sobre o trecho destacado é o que mais produz pânico moral nas notícias sobre o julgamento. Há um foco quase exclusivo na primeira parte (declaração de inconstitucionalidade), passando a impressão equivocada de que o mencionado dispositivo seria expurgado do ordenamento e não haveria mais qualquer consequência jurídica para o porte de drogas para uso pessoal.
O voto original decidiria pela manutenção integral do dispositivo em nosso ordenamento, seguiria sendo ilícito portar drogas para uso pessoal, por isso a expressão “sem redução de texto”. Haveria apenas uma mudança quanto à natureza da ilicitude regulada pelo art. 28: ela deixaria de ter uma base penal, para se converter em uma infração administrativa. Os crimes envolvendo tráfico de drogas seguem intocados.
Isso significa, por exemplo, que uma pessoa flagrada portando drogas para uso pessoal em um espaço público continuaria potencialmente punida e com as mesmas medidas previstas na lei (e que são atualmente aplicadas): advertência, prestação de serviços à comunidade ou medida de comparecimento a programa educativo. Continuaria sendo possível também a aplicação de multa para os casos de descumprimento injustificado das medidas aplicadas. Ou seja, do ponto de vista mais imediato, nada mudaria com o voto original do Min. Gilmar Mendes.
A alteração trazida com o afastamento da natureza penal afetaria questões técnicas processuais e, mais importante para o jurisdicionado, deixaria de produzir consequências penais (e extrapenais) da condenação. Atualmente, uma pessoa pode ser processada criminalmente pela conduta de portar, para uso pessoal, pequena quantidade de substância proibida. Se o caso não for finalizado em fase preliminar, com transação penal ou arquivamento por “falta de interesse de agir”[2], a pessoa é submetida a um processo e possível condenação criminal, com todas as consequências daí derivadas. Para mencionar algumas: suspensão dos direitos políticos (art. 15, III, da CF), formação de maus antecedentes (que produzem efeitos negativos sem prazo de duração[3]), configuração de reincidência (que gera consequências não apenas na dosimetria da pena, mas impede uma série de outros benefícios[4]).
Além disso, não é possível desconsiderar que a natureza penal da conduta (ainda que não tenha previsão de pena privativa de liberdade) gera consequências sociais bastante sensíveis, em especial, no mercado de trabalho[5]. Em síntese, a decisão original do Min. Gilmar Mendes mantinha a punição da pessoa portando drogas para uso pessoal nos mesmos termos do art. 28 da Lei 11.343/2006 e afastava essa miríade de efeitos adicionais trazidos pela atual natureza penal da infração.
As decisões posteriores são delimitações dessa primeira. Quase um mês depois (em setembro de 2015), o Min. Edson Fachin acompanhou a lógica do relator, mas restringiu a declaração da inconstitucionalidade apenas à droga popularmente conhecida como “maconha”. Com esse voto, todas as outras substâncias seguiriam com o mesmo tratamento atual (criminal) e apenas a “maconha” passaria a ter uma resposta de natureza administrativa.
Na mesma sessão, o Min. Barroso acompanhou a lógica do Min. Fachin (limitação da inconstitucionalidade sem redução de texto apenas para a maconha) e introduziu a discussão sobre a necessidade de criar parâmetros objetivos para diferenciar o usuário e o traficante de maconha – frise-se que, a partir de então, a discussão foi sendo limitada apenas a uma droga específica.
Com a retomada das discussões em 2023, o Min. Alexandre de Moraes seguiu a lógica restrita dos dois votos anteriores (natureza administrativa da infração apenas para a maconha) e fez algumas sugestões quantitativas para diferenciação entre usuário e traficante de maconha (mas mantendo a possibilidade de classificação diversa a depender do caso concreto[6]). Ao final do mês de agosto de 2023, o Min. Gilmar Mendes ajustou seu voto original e passou a acompanhar os demais ministros, quanto à esfera restrita da declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto apenas à “maconha” e adotou o posicionamento do Min. Alexandre de Moraes quanto ao critério objetivo para separação usuário/traficante.
A partir de então, o debate de repercussão geral estava estruturado na forma atual e três perguntas precisam ser respondidas pelos Ministros:
- Deve ser declarada a inconstitucionalidade sem redução de texto especificamente para a “maconha”, que passaria a ser infração administrativa e não penal?
- Deve ser fixado um critério objetivo para a distinção entre o usuário e o traficante de “maconha”?
- Se positiva a resposta anterior, qual o critério?
A primeira “grande” divergência se deu com o voto do Min. Cristiano Zanin: que entendeu constitucional o tratamento criminal do porte para uso pessoal também da “maconha”, mas acompanhou a necessidade de estipular critérios objetivos para distinguir usuário e traficante de maconha. Os Ministros André Mendonça e Nunes Marques seguiram pelo mesmo caminho.
Na sessão do dia 25 de junho, os demais Ministros se manifestaram. A Min.ª Cármen Lúcia e o Min. Dias Toffoli acompanharam a versão do relator e o Min. Luiz Fux acompanhou a orientação divergente. Por isso, com base cenário formado no julgamento do RE 635.659 em torno da natureza criminal ou não do porte para uso pessoal de “maconha”, a questão restou assim consolidada:
- O voto do relator (com 7 Ministros nesta orientação): porte de “maconha” para uso pessoal passa a ser infração administrativa; nada muda com relação às demais drogas; o art. 28 segue em vigor;
- O voto divergente do Min. Zanin (com 4 Ministros nesta orientação): porte de “maconha” para uso pessoal segue processado criminalmente; nada muda com relação a todas as drogas; o art. 28 segue em vigor.
Como se percebe, a discussão é bastante limitada: não envolve a remoção do art. 28 da Lei 11.343/2006 do ordenamento; o porte para uso pessoal especificamente de “maconha” seguiria sendo punível, porém, com natureza administrativa (sem aquelas consequências adicionais da esfera criminal); nada muda com relação a todas as outras drogas (porte para uso pessoal segue tendo natureza criminal); nada muda com relação à criminalização do tráfico.
A consolidação dessa maioria, no entanto, abre um número enorme de questões que não estão sendo enfrentadas. Se o porte de cannabis para uso não tem natureza criminal, significa que não pode ser julgada pelo Juízo criminal. Ou seja, o Juizado Especial Criminal não é mais competente para processar e julgar essa conduta. De igual modo, como não se trata mais de ação penal pública, o Ministério Público também não é o titular da incumbência de acusar alguém da prática dessa conduta.
A primeira lacuna a ser resolvida, então, é: quem teria competência para imputar a conduta e para processar e julgar o feito? Porte de “maconha” para uso pessoal passaria a ser competência dos Juizados Especiais da Fazenda Pública[7]? Seria incumbência das Procuradorias dos Estados imputar a conduta e trabalhar na instrução processual desses casos?
Com essa alteração, por se tratar de infração administrativa, não seria necessário sequer a reserva de jurisdição. Logo, possível regulamentar órgãos administrativos com a finalidade de apurar e aplicar as sanções previstas no art. 28 da Lei de Drogas para o usuário de cannabis, semelhante à aplicação de uma multa de trânsito. Isso significa que cada Estado (e, quiçá, Município) poderia instituir Departamentos ou Secretarias para essa finalidade. Seria possível atribuir a agentes públicos, que não policiais militares, a fiscalização e lavratura de autos de infração para essas condutas. Se esse caminho for adotado, uma coisa é intransponível: será necessário criar um procedimento, com garantia de contraditório, ampla defesa e duplo grau de análise, na forma dos incisos LIV e LV do art. 5º da CF.
Há também um problema quanto à materialidade da conduta. Quando o assunto é drogas, a configuração da conduta é revestida por contornos técnicos. As substâncias proibidas nem sempre são facilmente identificadas por qualquer agente público. A confirmação da composição química e, consequentemente, natureza ilícita da substância exige a realização de verificação pericial. Nem mesmo o usuário é capaz de confessar a prática do ato, porque, exatamente pela presença da ilegalidade penal do comércio, o próprio consumidor desconhece tecnicamente a origem e composição da droga utilizada; pode crer se tratar de uma substância, quando, em realidade é algo completamente diverso. Por isso, a perícia de constatação é tão imprescindível.
A aplicação de uma sanção administrativa pela mera possibilidade ou aparência de ilicitude da substância é evidentemente arbitrário e ilegal. E, então, iniciam as dúvidas sobre como regular a apuração da conduta. Os municípios têm estrutura orçamentária para a realização dessa perícia técnica – via agentes públicos ou serviços licitados? Seria formulado um convênio com o Estado para que a polícia científica faça essa atividade (sabendo da sobrecarga já existente nos IML’s)?
Não se pode esquecer de que a conduta segue sendo ilícita com base na legislação federal – mesmo com a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto especificamente para a “maconha”. Isso significa que processos criminais em razão de porte para uso pessoal de outras substâncias continuarão existindo nos JECrim’s, o que demanda também a realização de perícia para configuração da tipicidade da conduta. Em caso de problemas de sincronia dessa dupla perícia ou, pior, divergência entre elas, como seria resolvido o conflito?
O entulhamento de redundâncias na máquina administrativa, infelizmente, teria o resultado prático percebido com frequência em situações análogas: restariam punidas exatamente as pessoas que não possuem condições de apresentação de defesa na seara administrativa[8]; sofreriam os efeitos da sanção, sem possibilidade material de impugnação de vícios ou invalidades na atuação (e autuação) administrativa. Socialmente, seria mais uma camada de agravamento da situação dos destinatários tradicionais da seletividade penal – agora complementada pela seletividade administrativa.
Por fim, mas não menos importante, duas das medidas previstas no art. 28 da Lei de Drogas afetam diretamente a liberdade individual: prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Se for possível uma saída exclusivamente administrativa para aplicar essas medidas ao usuário de cannabis, a imposição nasce sem possibilidade de aplicação coercitiva. Imagine-se alguém que, sancionada administrativamente a prestar serviços à comunidade por portar “maconha” para uso pessoal. Se essa pessoa não cumprir voluntariamente a medida, poderia a Administração Pública forçar o cumprimento? Mandaria a polícia militar que, fisicamente, conduziria o agente à instituição onde seriam prestados os serviços?
Logicamente, inexistiria o mecanismo para assegurar esse cumprimento pela via coercitiva. Nem mesmo o Juiz criminal tem maiores mecanismos de coerção, conforme regulação da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas). Se alguém, condenado criminalmente por porte para uso pessoal, deixar de cumprir a medida imposta, o Juiz somente pode adotar o caminho do art. 28, § 6º: admoestação verbal ou multa. Ou seja, se nem no campo do processo penal existem ferramentas drásticas para forçar o cumprimento da medida imposta, menos força ainda teria a Administração Pública para assegurar a efetividade de suas decisões. Apesar da aparência muito técnica desses desdobramentos, elas serão muito reais para as pessoas que estejam portando maconha para uso pessoal e, especialmente, para a Administração Pública local (Estados e Municípios) que terão que preencher essas lacunas deixadas. Todos esses grupos estarão capturados, por um bom tempo, no caos de tentar solucionar todos esses impasses que uma declaração judicial (aparentemente tímida) acaba por produzir.
[1] COHEN, Stanley. Folk devils and moral panics: the creation of the Mods and Rockers. Abingdon, Oxon; New York: Routledge, 2011. (Routledge classics).
[2] Sem entrar no debate sobre o “interesse de agir” no processo penal, essa é a saída que tem sido adotada com frequência em diversas Promotorias que se manifestam pelo arquivamento, pois consideram as medidas atuais da legislação inócuas para a finalidade pretendida pela resposta jurídica ao fato.
[3] O STF decidiu no tema 150 (RE 593818 de relatoria do Min. Roberto Barroso) que o prazo quinquenal da reincidência não se aplica aos maus antecedentes. O STJ, por sua vez, tem entendido que o limite para o uso de maus antecedentes na dosimetria da pena é de 10 (dez) anos entre a data do segundo delito e o trânsito em julgado do primeiro (Cf. AgRg no HC n. 777.795/SC, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 17/4/2023, DJe de 20/4/2023). Considerando o tempo de duração de processos criminais, os maus antecedentes podem produzir efeitos negativos por décadas!
[4] Impede acordo de não persecução (art. 28-A, § 2º, II, do CPP), aumenta a fração necessária para progressão de regime (art. 112, II, da LEP), veda livramento condicional (art. 83, I, do CP) etc.
[5] Cf. RABELO, Danilo dos Santos; PINTO, Hilbert Melo Soares; DUARTE, Evandro Charles Piza. A Uberização dos Antecedentes Criminais: impedimentos laborais e legitimações jurídicas. Revista Direito e Práxis, v. 15, n. 3, p. 1–30, 17 ago. 2023. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistaceaju/article/view/71621. Acesso em: 17/05/2024.
[6] A discussão envolvida aqui sobre standard probatório e o incremento do ônus argumentativo para a classificação como traficante daquele que portar quantidades baixas de maconha é mais complexa e foge ao escopo deste texto.
[7] Art. 2º da Lei 12.153/2009: É de competência dos Juizados Especiais da Fazenda Pública processar, conciliar e julgar causas cíveis de interesse dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, até o valor de 60 (sessenta) salários mínimos.
[8] Ver, por exemplo, o art. 3º, § 1º, do Decreto 95/2023 de Itapema/SC. Nesse Município, somente seria realizada alguma verificação sobre a natureza da substância se apresentada defesa preliminar e se o questionamento for feito. Ainda assim, a verificação não tem natureza técnica (pois amparada em constatação preliminar). Inexistindo defesa, a punição seria aplicada sem qualquer elemento de criticidade ou ceticismo sobre a natureza ilícita da substância apreendida.
Sobre o autor:
Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estágio doutoral na Universidade de Hamburgo (Alemanha). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Advogado e membro da Comissão de Política sobre Drogas da OAB/PR.