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E-commerce nas contratações públicas brasileiras? A via do sandbox regulatório com plataformas privadas

Por que é oportuno explorar a experiência e as tecnologias já desenvolvidas no setor privado de comércio eletrônico

Recentemente, chamou atenção na Câmara dos Deputados o rápido impulso dado à tramitação do Projeto de Lei n. 2.133/2023, que altera a Lei nº. 14.133/2021 para criar o chamado “Sistema de Compra Instânea (Cix)”. Proposto pelo Deputado Daniel Soranz, o Cix seria disciplinado pelo novo artigo 75-A da Lei de Licitações e Contratos Administrativo, consistindo em um sistema para “aquisição, por meio de credenciamento em mercado fluido, de bens padronizados e previamente selecionados pela Administração Pública”.

O autor do projeto, que atualmente exerce o cargo de Secretário de Saúde do Município do Rio de Janeiro, explicou em seu canal no Youtube que o objetivo é reduzir a “carga burocrática” na aquisição de itens essenciais e padronizados, como medicamentos para a rede de saúde pública.

Após a publicação do vídeo, no mês de maio, o projeto foi aprovado na Comissão de Finanças e Tributação (CFT) e recebeu parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), antes do início do recesso parlamentar.

Tecnicamente, o referido PL nº. 2.133/2023 necessita de ajustes, começando pela localização de seus dispositivos, que foram incluídos no capítulo das contratações diretas. No entanto, a intenção do projeto é louvável, pois aborda um problema crítico: três anos após a entrada em vigor da Lei nº. 14.133/2021, o aguardado credenciamento dos mercados fluidos continua sendo apenas uma promessa.

Do outro lado do balcão, no mercado privado, a pandemia de COVID-19 teve um impacto significativo no comércio eletrônico, acelerando sua adoção e crescimento em diversos setores. Como em outras partes do mundo, os brasileiros mudaram seus hábitos de consumo. Logística, tecnologia e infraestrutura também evoluíram para atender ao volume crescente de pedidos, melhorar a experiência dos clientes e garantir entregas rápidas.

Mas, o que falta para essa revolução também alcançar as contratações públicas? É realmente necessário alterar a lei para executar algo como o proposto pelo Deputado Daniel Soranz?

Origem do credenciamento em mercados fluidos na legislação brasileira

A possibilidade de credenciamento para mercados fluidos prevista na atual redação da Lei nº 14.133/2021 decorre de uma inclusão feita no relatório do ex-Senador Fernando Bezerra Coelho, então relator do PL nº. 559/2013 na Comissão Especial do Desenvolvimento Nacional, em 2016. Na época, a inspiração veio de normas constantes na Lei Modelo da UNCITRAL sobre Aquisições Públicas de 2011 e na Diretiva 2014/24/EU da União Europeia.

No entanto, passados quase dez anos, a operação em mercados dinâmicos ainda não se tornou uma realidade nas contratações públicas, nem no Brasil, nem entre os países que inspiraram o modelo brasileiro.

Na União Europeia, por exemplo, embora se discuta a prática de sistemas dinâmicos de aquisição há mais de uma década, o avanço foi decepcionante nesse período. A principal plataforma da comunidade, a e-Vergabe, da Alemanha, é comparável ao Compras.gov.br do Brasil e não proporciona uma experiência de e-commerce semelhante às transações no setor privado pós-pandemia.

A experiência dos Estados Unidos

Enquanto os europeus foram pioneiros na regulação das aquisições diretas e dinâmicas de produtos e serviços, os Estados Unidos somente se movimentaram quatro anos depois, em 2018. Todavia, o modelo que os norte-americanos adotaram tem se mostrado mais eficaz em termos práticos.

A aquisição de produtos por meio de plataformas de comércio eletrônico pelo governo federal dos EUA foi impulsionada pela Seção 846 da National Defense Authorization Act (NDAA) de 2018. Essa seção autorizou a General Services Administration (GSA) a instituir um programa de plataformas comerciais por meio de contratos com plataformas privadas. Os americanos investiram em um modelo de sandbox regulatório, permitindo à GSA desenvolver e testar o uso de portais privados de comércio eletrônico para compras abaixo do limite de microcompra, atualmente estabelecido em $10.000.

Nesse contexto, a Seção 846 autorizou a GSA a conduzir um projeto piloto de até três anos para testar o uso dessas plataformas. Durante esse período, relatórios de progresso deveriam ser submetidos ao Congresso dos Estados Unidos, detalhando os benefícios, desafios e sugestões para a expansão do programa.

Com a autorização concedida, a GSA iniciou um processo formal de solicitação e avaliação a partir de um edital público para participação no programa de implantação de portais de e-commerce, em outubro de 2019. De acordo com o edital, as propostas seriam avaliadas com base em diversos critérios, incluindo a capacidade de conformidade com regulamentações federais, facilidade de uso, capacidade de oferecer preços competitivos e disponibilidade de ferramentas de gestão de compras e relatórios.

Vale lembrar que a conformidade com os regulamentos federais é de extrema importância nos Estados Unidos. Ao contrário do que muitos possam imaginar, a experiência dos EUA com objetivos colaterais das licitações públicas é bem mais abrangente que a do Brasil. Foi lá que se disseminaram políticas como as preferências para pequenas empresas, empresas criadas por veteranos, mulheres, pessoas com deficiência, entre outros grupos.

Assim, ao final do processo de chamamento das plataformas privadas, em junho de 2020, a GSA anunciou que havia concedido contratos sem custo a três principais fornecedores de plataformas de comércio eletrônico: Amazon Business, Fisher Scientific e Overstock.com.

O programa piloto começou com uma fase de prova de conceito, em que a GSA pôde testar e aperfeiçoar o uso dessas plataformas. O objetivo era proporcionar uma experiência de compra simplificada e eficiente, garantindo ao mesmo tempo a conformidade com os regulamentos federais e promovendo a competitividade entre os fornecedores.

Desde então, o programa de plataformas comerciais dos EUA, agora denominado GSA Advantage!, tem permitido que as agências governamentais comprem diretamente de múltiplas plataformas de e-commerce, integrando práticas de mercado B2B com as necessidades governamentais. Há competição entre os portais e, com o sucesso inicial do programa, o governo expandiu o modelo, que atualmente conta com oito plataformas de contratação.

O modelo adotado nos Estados Unidos foi rapidamente seguido pelo Canadá, que tem buscado aproveitar a experiência e as tecnologias desenvolvidas no setor privado para otimizar os processos de contratações públicas​ de menor valor.

A alternativa do portal próprio

Outros países tentaram adotar práticas semelhantes de e-commerce por meio de portais governamentais próprios, mas não conseguiram alcançar a mesma amplitude e diversidade de aplicação que os Estados Unidos.

Nesse sentido, destaca-se a experiência do Reino Unido, que, ainda quando fazia parte da União Europeia, instituiu seu próprio portal, o Digital Marketplace, em 2015, sob o mote dos Sistemas Dinâmicos de Aquisição (DPS) mencionados na Diretiva 2014/24/EU. Desde então, foi criado o G-Cloud Framework, uma parte do portal que permite a aquisição direta de serviços de TI de fornecedores previamente aprovados.

De maneira similar, na Austrália, existe uma iniciativa chamada BuyICT, destinada à compra de serviços e produtos de tecnologia da informação e comunicação, semelhante ao modelo do Reino Unido.

O caso brasileiro

A rigor, pela forma com que está redigida a legislação brasileira, é possível desenvolver uma ferramenta própria de comércio eletrônico semelhante às iniciativas do setor privado. O credenciamento previsto no art. 79, inciso III, embora tímido, abre as portas para essa possibilidade.

No caso do governo federal, uma opção inicial seria desenvolver uma ferramenta tecnológica integrada ao Compras.gov.br, permitindo a comparabilidade de preços flutuantes em um vasto credenciamento de fornecedores. Isso exigiria um regulamento complexo e engenhoso para garantir transparência na estabilização dos preços no mercado fluido. Investiríamos recursos públicos no desenvolvimento desse sistema, possivelmente contratando desenvolvedores privados, em um cenário de altos custos com profissionais de TI e nos submetendo aos riscos inerentes à atividade, como os ciberataques.

Há outra saída?

Sim. À semelhança do que ocorreu em outros países no final da década de 2010, e impulsionado pela revolução causada pela pandemia de COVID-19, o Brasil tem vivenciado um célere desenvolvimento de plataformas privadas de comércio eletrônico. Essas plataformas também são utilizadas pelos setores de logística B2B (empresas que vendem produtos e serviços para outras empresas). No Brasil, há empresas amplamente reconhecidas disputando esse mercado, como Mercado Livre, Amazon Brasil, Magazine Luiza Empresas, Americanas Empresas, Compra Agora, entre outras.

Com efeito, essa expertise já existente no setor privado pode ser aproveitada pelo setor público de forma controlada, utilizando a sistemática de sandbox regulatório, como fizeram os Estados Unidos e como o Canadá está implementando. Pode-se pensar, por exemplo, em um projeto piloto limitado a contratações de baixo valor e com duração de dois ou três anos.

Sobre o uso de plataformas privadas para as contratações públicas brasileiras, não há necessidade de alteração legal, uma vez que o art. 175, § 1º, da Lei nº. 14.133/2021 prevê que “desde que mantida a integração com o PNCP, as contratações [dos entes federativos] poderão ser realizadas por meio de sistema eletrônico fornecido por pessoa jurídica de direito privado”.

Assim, se estruturada com regras adequadas, com o governo avaliando os resultados de forma transparente e em um ambiente controlado, essa experiência pode ser transposta juridicamente para o Brasil.

Decerto, uma avaliação detalhada deve examinar questões como o tempo e a facilidade com que os produtos e serviços podem ser adquiridos; a economia de custos e os benefícios financeiros gerais; o cumprimento correto dos regulamentos e das políticas de contratação pública; o feedback dos agentes de contratação que utilizam as plataformas; e a capacidade de monitorar e relatar gastos e transações de maneira clara e eficiente.

Dependendo dos resultados de uma avaliação detalhada de desempenho, várias ações podem ser tomadas. Se várias plataformas se mostrarem eficazes, pode ser interessante expandir seu uso para contratações de valores mais altos.

Ainda assim, valeria a pena alterar a lei?

Já se mencionou que a legislação atual permite a instituição de um programa piloto, como sugerido, mediante regulamento cuidadosamente elaborado. No entanto, se houver uma verdadeira vontade legislativa, haveria espaço para melhorar a lei?

Sim, mas não pela inclusão do regramento contido no PL nº. 2.133/2023, que cria um art. 75-A.

Tecnicamente, seria mais adequado investir em duas alterações.

A primeira é separar, no art. 79 da Lei nº. 14.133/2021, o credenciamento de mercados fluidos (art. 79, inc. III) de um credenciamento de plataformas de comércio eletrônico, criando um novo inciso. A razão é meramente prática e visa facilitar a compreensão dos milhares de usuários da lei: há mercados fluidos que não são operados pelas plataformas padrão de comércio eletrônico. Exemplos incluem mercados especializados por questões regulatórias, como os de produtos derivados de petróleo e gás, ou mercados com práticas específicas, como serviços especializados ou de alta complexidade.

A segunda alteração, mais relevante, seria para melhorar a auditoria das contas e garantir o respeito à ordem cronológica dos pagamentos. Nesse caso, seria oportuno incluir uma nova categoria de contrato nos incisos do art. 141, que trate especificamente dos contratos celebrados por meio de plataformas de comércio eletrônico, vinculando-se a modos de pagamento típicos das transações privadas.

Conclusão

Não é necessário o imenso esforço de movimentar o processo legislativo para executar o que propõe o PL nº. 2.133/2023. Um decreto presidencial fundamentado no art. 79, inciso III, da Lei nº. 14.133/2021, é suficiente para permitir que o governo teste a contratação por meio de plataformas de comércio eletrônico similares àquelas que os brasileiros têm utilizado nos últimos anos.

Tal decreto deveria prever questões como a obrigatoriedade de a plataforma oferecer funcionalidades de busca, comparação de preços, gestão de compras, e emissão de relatórios detalhados. Outrossim, pode-se atribuir ao veículo de comércio eletrônico o dever de garantir a conformidade com todas as regulamentações aplicáveis, incluindo normas de sustentabilidade e as preferências relacionadas a micro e pequenas empresas.

Seria também recomendável que o projeto piloto permitisse a adesão voluntária de Estados, Municípios e do Distrito Federal, mediante acordo de adesão. Essa inclusão é importante para coletar dados e informações sobre uma variedade maior de contextos e necessidades administrativas, além de promover a colaboração e o compartilhamento de melhores práticas entre as diferentes esferas de governo.

Nesse cenário, a origem da ideia é secundária. A história do Direito brasileiro é rica em adotar variadas experiências estrangeiras, de A a Z. E isso é inteligente, pois, quando se trata de gasto público, o importante é seguir as políticas de contratação estabelecidas pelo legislador e utilizar o dinheiro dos contribuintes brasileiros da maneira mais eficiente possível.

Com um projeto piloto executado em um espaço de tempo relativamente curto, seria possível identificar e conhecer de verdade os possíveis benefícios tangíveis, como eficiência nas compras, transparência nos processos e economia de custos; reconhecer e mitigar possíveis desafios e limitações na implementação de plataformas de comércio eletrônico; além de ajustar práticas e regulamentações com base nos resultados e feedbacks obtidos durante o projeto piloto.

Decisões públicas devem ser tomadas de forma informada e ajustada à realidade brasileira, garantindo que as contratações do Estado sejam realizadas com eficiência, transparência e competitividade. Somente com dados concretos em mãos podemos avaliar se é mais vantajoso continuar com os métodos atuais de contratação pública ou adotar práticas mais próximas das utilizadas por pessoas físicas e jurídicas em geral.

Sobre o autor:

Pós-doutorando em Direito na Universidade de São Paulo - USP, Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo - USP, Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB, Especialista em Economia Nacional pela The George Washington University - GWU e Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Procurador Federal na Advocacia-Geral da União.

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