A 11ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) determinou, por maioria, o prosseguimento de ação penal contra um médico legista acusado de falsidade ideológica e ocultação de cadáver de vítima da ditadura militar, ocorrida em 1969. A decisão veio após recurso do Ministério Público Federal (MPF) contra a absolvição sumária do réu pela 5ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP.
Contexto da Absolvição Sumária
A absolvição sumária havia sido fundamentada na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Lei da Anistia (Lei 6.683/1979). Em 2010, o STF declarou a anistia ampla e irrestrita aos crimes políticos e conexos praticados entre setembro de 1961 e agosto de 1979, considerando-a compatível com a ordem constitucional.
Intervenção da Corte Interamericana de Direitos Humanos
Poucos meses após o julgamento do STF, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Brasil a investigar e punir criminalmente os agentes da repressão política da ditadura militar, com base na Convenção Americana de Direitos Humanos. A Corte IDH determinou o afastamento dos efeitos jurídicos da Lei da Anistia, por entender que ela violou o direito à justiça das vítimas e seus familiares.
Acusações Contra o Médico Legista
Segundo a denúncia do MPF, o médico legista omitiu declarações no laudo de exame necroscópico para alterar a verdade dos fatos, contribuindo para a ocultação e impunidade de crimes de tortura e homicídio praticados contra Carlos Roberto Zanirato. Os restos mortais da vítima ainda não foram localizados.
Fundamentos da Decisão do TRF3
O desembargador federal Hélio Nogueira, relator do acórdão, afirmou a obrigatoriedade de implementação do entendimento da Corte IDH. Ele ponderou que o conflito entre as jurisdições é apenas aparente, já que o STF é responsável pelo controle de constitucionalidade e o Tribunal Internacional pelo controle de convencionalidade.
“Em face da sistemática do duplo controle dos atos normativos internos, a Lei 6.683/79 deve ser reputada compatível com a Constituição da República de 1988, porém inconvencional à luz da Convenção Americana de Direitos Humanos, não devendo tal diploma subsistir, portanto, na ordem jurídica”, destacou o relator.
Além disso, a natureza permanente do crime de ocultação de cadáver descarta a prescrição da pretensão punitiva. O desembargador concluiu pela necessidade de afastamento da declaração de extinção da punibilidade do agente, permitindo o prosseguimento da ação penal.
Questão Jurídica Envolvida
A questão jurídica envolve a compatibilidade da Lei da Anistia (Lei 6.683/1979) com a Constituição Federal e sua inconvencionalidade diante da Convenção Americana de Direitos Humanos. Além disso, destaca-se a natureza permanente do crime de ocultação de cadáver, que impede a prescrição da pretensão punitiva.
Legislação de referência
- Lei 6.683/1979 (Lei da Anistia)Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, inclusive os relacionados ou imputados aos crimes de qualquer natureza, relacionados a delitos de motivação política.
- Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica)Art. 1º Obrigação de respeitar os direitos
- Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades reconhecidos nela e a garantir o seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma.
Processo relacionado: Recurso em Sentido Estrito 5002620-24.2021.4.03.6181