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A filosofia do absurdo no serviço público

O mito de Sísifo como metáfora da rotina na Administração Pública brasileira

Sísifo[1] era o rei de Corinto e ficou conhecido por ter enganado a morte duas vezes. Diz a história que Sísifo fez um acordo com um deus-rio para que a população de Corinto recebesse água. Esse acordo despertou a fúria de Zeus que mandou Tânato, a morte, levar Sísifo para o mundo subterrâneo.

Ao encontrar com Tânato, Sísifo elogia sua beleza e a presenteia com um colar. Na verdade, tratava-se de um coleira que aprisiona a morte – Tânato, subvertendo a ordem natural por um determinado período, dado que nesse espaço temporal ninguém morreu.

O deus da morte, Hades, vai ao encontro de Tânato e a liberta, ordenando que fosse buscar Sísifo. Antes de sair com Tânato para o mundo subterrâneo e encontrar com Hades, Sísifo conversa com sua esposa e, sigilosamente, a pede para que não enterre seu corpo.

No encontro com Hades, Sísifo relata que não poderia aceitar essa desonra e diz que precisa voltar para ordenar o enterro de seu corpo. Assim, engana a morte pela segunda vez.

Sísifo morre de velhice e os deuses o castigam por considerá-lo um revoltado e o condenam a carregar uma pedra morro acima. Segundo Camus[2]Os deuses condenaram Sísifo a rolar incessantemente uma rocha até o alto de uma montanha, de onde tornava a cair por seu próprio peso.

Para alguns, o trabalho de Sísifo personifica a luta diária do indivíduo diante da repetição ordinária dos fatos da vida: acordar, pegar um transporte, deslocar-se ao trabalho, almoçar, mais algumas horas de trabalho, retornar para casa. E assim sucessivamente, claro, com as adaptações que cabe na vida e rotina de cada um de nós.

Camus, no entanto, afirma que é preciso imaginar Sísifo feliz, revelando uma perspectiva particular sobre a compreensão do mito. Essa felicidade nasce da consciência do absurdo de sua condição (empurrar a pedra morro acima).

Não se trata de uma tragédia. Mas de um ato de liberdade que se expressa ao reconhecer as dificuldades de sua realidade e enfrentá-la com dignidade, esforço e consciência. Segundo a cantora Iza[3], “Fé pra quem é forte, fé pra quem é foda, fé pra quem não foge à luta, fé pra quem não perde o foco”. Portanto, um ato de resistência lúcida.

Talvez você, caro leitor, querida leitora, possa estar se perguntando: o que o mito de Sísifo tem a ver com a Administração Pública? Bom, eu diria que tudo, sobretudo após o ano de 2018 com a publicação da Lei n. 13.1655, que alterou a LINDB[4].

A LINDB passa a reforçar a importância da realidade no contexto da interpretação e da aplicação das normas de Direito Público, destacando no artigo 20 a necessidade de se observar as consequências práticas das decisões administrativas, sobretudo quando relacionadas com valores jurídicos abstratos – princípios e normas de conteúdo aberto (o que seria justa competição?).

Mais do que isso, no artigo 22, a LINDB qualifica a realidade como vetor para interpretação e aplicação das leis (normas jurídicas). É preciso não perder de vista a relação entre texto (norma) e contexto (situação específica) de cujo diálogo nasce a norma jurídica específica aplicável ao caso concreto.

É nesse momento que o mito de Sísifo conecta-se com a Administração Pública, tendo em vista o reconhecimento que a LINDB faz das dificuldades reais que estão presentes no dia a dia da gestão pública e que precisam ser consideradas na interpretação e aplicação das normas públicas.

Essas dificuldades são representadas pela falta de recursos orçamentários, pela ausência de investimentos na capacitação e qualificação de servidores públicos, pela carência de estrutura material e equipamentos para o desenvolvimento adequado das atividades, pela quantidade excessiva de leis, portarias, instruções normativas e suas contradições internas, pelo não funcionamento de sistemas e, certamente, pelo medo de eventual responsabilização.

A LINDB, portanto, qualifica essas “pedras” que surgem no meio do caminho, destacando que elas precisam ser compreendidas a partir da realidade e das condições de calor, temperatura e pressão que influenciam o agente público e impactam sobre o seu processo decisório.

É fundamental, pois, compreender que o peso dessas “pedras”, que a inclinação e a altura da montanha são variáveis e ao mesmo tempo representam um infinito particular com o qual o agente público lida todos os dias, incessantemente, com competência, zelo e dedicação.

Essa é a filosofia do absurdo no serviço público: saber que o amanhã virá e de que novamente subiremos montanha acima, mas com a clareza e a consciência de que é preciso persistir, uma vez que no esforço de servir revela-se o sentido do trabalho para a realização de políticas públicas em benefício da sociedade. É preciso imaginar o gestor, a gestora pública feliz, mesmo diante das dificuldades, mesmo diante dos riscos, mesmo diante do absurdo. Nas palavras de Gonzaguinha[5], “eu acredito é na rapaziada, que segue em frente e segura o rojão, eu ponho fé é na fé da moçada, que não foge da fera e enfrenta o leão.”


Referências

[1] Fonte: O mito de Sísifo – Disponível em: https://razaoinadequada.com/2018/04/18/camus-o-mito-de-sisifo/. Acesso em: 01.06.2025, 09:29.

[2] Albert Camus, O Mito de Sísifo.

[3] Trecho da música Fé, interpretada por Caetano Veloso e Maria Bethânia.

[4] Decreto-Lei n. 4.657, de 04 de setembro de 1942.

[5] Trecho da música E vamos à luta.

Sobre o autor:

Procurador Federal - AGU. Doutorando em Direito na UNB. Mestre em Direito pela UFRN. Professor Voluntário de Direito Administrativo da UNB. Autor do livro “Entre as alternativas possíveis e o erro grosseiro nas contratações públicas”.

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