A 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) manteve a obrigação da operadora Quallity Pró Saúde Assistência Médica Ambulatorial Ltda de reembolsar os custos do congelamento de óvulos realizado por uma paciente diagnosticada com câncer de colo do útero. O colegiado também reconheceu o dever da empresa de indenizar a consumidora em R$ 10 mil por danos morais, devido à recusa injustificada da operadora em arcar com o procedimento necessário à preservação da fertilidade.
Contexto do caso e tratamento indicado
A autora da ação foi diagnosticada com câncer e, antes de iniciar o tratamento oncológico com quimioterapia e radioterapia — terapias sabidamente agressivas ao tecido ovariano —, optou por realizar o congelamento de seus óvulos. O procedimento, orçado em R$ 24.935,00, foi custeado diretamente por ela, diante da negativa da operadora do plano de saúde. A consumidora alegou que o procedimento era parte essencial do tratamento, considerando a preservação da fertilidade como direito fundamental ligado ao planejamento familiar.
Questão jurídica envolvida
A decisão envolveu a análise da obrigação dos planos de saúde quanto ao custeio de procedimentos não listados no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Embora o Superior Tribunal de Justiça tenha reconhecido a taxatividade do rol da ANS como regra, admitiu-se a exceção no caso concreto com base na urgência e relevância do tratamento. O congelamento de óvulos foi compreendido como medida de prevenção à infertilidade, decorrente dos efeitos colaterais do tratamento contra o câncer, e não como procedimento estético ou eletivo. A 2ª Turma Cível destacou ainda que a operadora não poderia interferir na indicação clínica feita por médico responsável.
Fundamentos jurídicos do julgamento
A Turma aplicou o Código de Defesa do Consumidor, conforme a Súmula 608 do STJ, e considerou a negativa de reembolso abusiva diante da urgência e da finalidade terapêutica do procedimento. Citou-se também o art. 10, §13, da Lei 9.656/1998 (com a redação dada pela Lei 14.454/2022), que prevê cobertura obrigatória, mesmo para procedimentos fora do rol da ANS, quando comprovada a eficácia e necessidade clínica. Além disso, foi reconhecido o caráter in re ipsa do dano moral, ou seja, sua ocorrência prescinde de comprovação específica, bastando a demonstração do ato ilícito e da situação constrangedora.
Impactos práticos da decisão
A decisão reforça o entendimento de que tratamentos preventivos à infertilidade, indicados como complementares à terapêutica principal contra o câncer, devem ser cobertos pelos planos de saúde, mesmo quando não expressamente previstos no rol da ANS. Também confirma que a recusa injustificada ao custeio pode gerar indenização por danos morais. Com isso, consolida-se jurisprudência protetiva do consumidor, especialmente em casos que envolvem doenças graves e o exercício de direitos fundamentais como o planejamento familiar.
Legislação de referência
Lei 9.656/1998, art. 10, § 13:
“Em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol referido no § 12 deste artigo, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que:
I – exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou
II – existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.”
Constituição Federal, art. 226, § 7º:
“O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.”
Código de Defesa do Consumidor:
Art. 2º:
“Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.”
Art. 3º:
“Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.”
§ 2º – Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
Art. 6º, incisos I e VI:
“São direitos básicos do consumidor:
I – a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;
[…]
VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;”
Art. 14:
“O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.”
Súmula 608 do STJ:
“Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão.”
Processo relacionado: 0714302-81.2024.8.07.0001