Há quem entenda que as contratações públicas não são instrumentos para a realização de políticas públicas. Essa é uma das riquezas do Direito: a possibilidade de divergências interpretativas, preservando-se, no entanto, o respeito entre os atores e atrizes envolvidos.
Isso, naturalmente, é uma questão de posição, interpretação ou compreensão das funções do Direito. No caso, penso na íntima relação que há entre os direitos fundamentais e as políticas públicas de educação, saúde, esportes, meio ambiente e tantas outras que você possa imaginar.
Segundo o grupo de samba Casuarina[1], “Do ponto de vista da terra quem gira é o sol. Do ponto de vista da mãe todo filho é bonito. Do ponto de vista do ponto o círculo é infinito”. Tudo é relativo e depende do seu ponto de observação e da posição que você se encontra, inclusive e, sobretudo, academicamente.
O compositor baiano Caetano Veloso dirá: “Tudo em volta está deserto, tudo certo. Tudo certo como dois e dois são cinco”[2]. Penso que essa divergência enriquece o debate. Ela se coloca como um rio cujos meandros de possibilidades serão pensados e repensados, contribuindo para a evolução do Direito.
Não obstante, o pesquisador ou a pesquisadora que desempenha suas atividades com seriedade, sabe que o respeito é essencial nesse debate de ideias. Tem a convicção de que “às vezes o ponto de vista tem certa miopia, pois enxerga diferente do que a gente gostaria”, no entanto, compreendem que “não é preciso por lente nem óculos de grau, tampouco que exista somente um ponto de vista igual. O jeito é manter o respeito e ponto final”[3].
Pois bem, o fato é que as políticas públicas, em linhas gerais, são ações e decisões tomadas pelas instituições públicas com o objetivo de atender às demandas e necessidades da sociedade. São uma caixa de ferramentas que o governo dispõe para promover o bem-estar social, étnico, cultural ou econômico, logo, para a realização e construção do direito de cidadania.
As demandas da sociedade relacionam-se, por exemplo, com educação, saúde, segurança, transporte e mobilidade urbana, moradia, lazer, meio ambiente saudável, dentre tantas outras que poderiam ser mencionadas aqui. Fiquemos com essas. Pensemos na educação.
O poeta Manoel de Barros diz que “O maior apetite do homem é desejar ser. Se os olhos veem com amor o que não é, tem ser.” A educação é o instrumento que possibilita a construção desse ser!
E quando falamos em política pública de educação é preciso destacar que ela perpassa por todas as etapas de formação de uma pessoa, desde a educação básica até a educação superior – artigo 21, I e II da lei de diretrizes e bases da educação nacional – LDB[4].
E você, querido leitor, querida leitora, deve estar se perguntando: mas afinal, o que as contratações públicas têm a ver com o direito fundamental à educação? Como as contratações públicas podem ser compreendidas como mecanismo para realização desses direitos fundamentais?
O poeta Manoel de Barros dirá: “Ao poeta faz bem Desexplicar – Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes”. Veja, mire com atenção a grandiosidade desse verso. Não repare apenas no vaga-lume, posto que a exuberância do seu brilho não existiria sem a imensidão do escuro da noite.
Da mesma forma, penso e acredito veementemente que a política pública da educação não existiria em sua plenitude sem as contratações públicas. A questão aqui diz respeito ao fato de que fomos ensinados a compreender a política pública numa percepção restrita, isto é, associada apenas a sua atividade finalística. No caso da educação, as aulas ministradas por professores e professoras, as pesquisas desenvolvidas e os projetos executados, por exemplo.
Essa forma de pensar ou de compreender as políticas públicas lembra-me o escritor moçambicano Mia Couto que, no seu livro O fio das missangas, escreve lindamente que “a missanga todos as veem. Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as missangas. Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo”.
Também assim é a compreensão a que me referi acima a respeito das políticas públicas: todos e todas veem a sua face finalística, esquecendo o fio de trabalho silenciosamente desenvolvido por quem trabalha com as contratações públicas e que são estruturantes para a execução das políticas públicas.
Considere que você mora em uma região cujo clima é seco e quente e o calor é constante e a umidade relativa do ar é baixa em determinada época do ano, tornando os dias mais quentes e as noites mais frias.
Imagine que nas escolas dessa região não foram disponibilizados umidificadores de ar ou que essas salas de aulas têm ar-condicionado, mas que não funcionam. Ambas as situações estão relacionadas com as contratações públicas. No caso, a não realização de licitação para contratar serviços de manutenção ou aquisição dos bens citados não foram concluídas ou realizadas. A depender das condições climáticas, a execução da política pública pode ficar inviável.
Imagine as escolas públicas e universidades públicas sem serviços de limpeza, vigilância, segurança, motorista, de manutenção predial e de ar-condicionado. Sem aquisição de material didático e livros, sem aquisição de alimentos para a merenda escolar ou serviços de fornecimento de refeições nos restaurantes universitários.
Agora reflita, como ficaria a execução finalística da política pública?
Desse modo, não se trata apenas de uma licitação para a prestação de serviços ou aquisição de bens ou mesmo a construção de um prédio onde funcionará uma escola ou bloco de aula de universidade. Não se trata apenas de um contrato administrativo. Não se trata apenas de uma atividade acessória.
É muito mais do que isso. As contratações públicas são necessárias, essenciais e parte estruturante da execução da política pública, são, portanto, caminhos silenciosamente costurados por servidores e servidoras que, diariamente, dedicam seu tempo e se empenham para, a partir da posição que se encontram, dar sua contribuição para a realização de diversas políticas públicas para atender às demandas e necessidades da sociedade.
Referências
[1] Trecho da música Ponto de Vista.
[2] Trecho da música Como.
[3] Trecho da música Ponto de Vista.
[4] Lei n. 9.304/1996.
Sobre o autor:
Procurador Federal - AGU. Doutorando em Direito na UNB. Mestre em Direito pela UFRN. Professor Voluntário de Direito Administrativo da UNB. Autor do livro “Entre as alternativas possíveis e o erro grosseiro nas contratações públicas”.